31 outubro 2010

sobremesa

Resta sobre a mesa um único copo. Meio cheio. (Talvez meio vazio.) Permanece pousado junto a uma farta travessa de comida, mal encetada. Sobre a toalha que cobre o tampo de madeira preparado para as refeições jaz um par de braços, caídos, abandonados à solidão. Duas mãos que se têm uma à outra como única e eterna companhia. Como único e eterno aconchego. Com único e eterno auxílio.
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Lavada a cara pela angústia, é ali que ela regressa. Noite após noite. Sempre. Fustigada por uma necessidade de ar que nunca se esgota e que a encaminha para vagabundagens tardias e sem nexo. Mas que, ao mesmo tempo, a traz sempre de volta ao ponto de partida, sem que daí arranque, em madrugada alguma, uma nova meta.
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Enxuga as lágrimas e deixa tudo como está. De que serve retomar o incómodo processo de manter a casa, infrutiferamente, organizada se é ela a única a dar-lhe uso?
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Preparara o jantar confiante de companhia. (A felicidade existe apenas no instante em que fechamos os olhos.) Ela chegara. Jantara, incomodada. E partira. Aparentemente sem deixar rasto. Levantara a loiça, bebera o último trago de vinho que lhe restava no copo e fechara a porta atrás de si, isolando do lado de dentro o desconforto.

24 outubro 2010

guerrilha

Hoje dou pelos dias passos mais curtos. Empenho-me em batalhas mais miúdas. Ultrapasso um obstáculo, apenas um, de cada vez. Faço-o como se cada acto tivesse agora um valor acrescido, potenciado pela força exacerbada com que me retenho antes de cada investida.
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Neste cemitério de lutas inglórias ganhei hoje uma disputa. Não sei se sairei da guerra vencedora. Que importa? Hoje o sabor que se me esponja na boca é de glória. De um triunfo agridoce, mesclado de aromas tão amargos quanto viciantes.
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Receio, como Diogo do “Rio das Flores”, que a liberdade se torne um vício. E que esta alma de guerrilheira de causas perdidas me arraste à dependência. Temo que me conduza a uma recta - linear, contínua, constante, e sem cheiros ou cores em redor, que me distraiam ou me despertem de uma possível cegueira. Amedronta-me poder descontextualizar o quotidiano, fechá-lo no meu mundo, nos meus valores, nos meus padrões, e atribuir demasiada importância a estes passos curtos, a estas batalhas miúdas, a estes obstáculos banais.
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Ou talvez não.
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Deixo que o egocentrismo me consuma. Cedo espaço ao narcisismo. Vanglorio-me. Mesmo que em tamanha mesquinhez. E se estiver errada… Tenho esse direito.

06 outubro 2010

trovejo

Julguei poder agir livremente. Julguei ser detentora do controlo absoluto. Julguei-me até invencível. (Venham lá os abismos, as torrentes e os desertos!).
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Depois encalhei. Tropecei. Descaí. Os músculos cederam e eu perdi a força. Afrouxei as mãos nas teias de onde me pendia a rota. Senti-as oscilar. Balançaram e eu escorreguei. Puxei os cordéis para me agarrar. Tentei prender-me. Apoiar-me. Não resultou. Nada funcionou. Mudara a conjuntura e eu, de tão embrenhada no mundo que não sei se é meu se dos outros, mal notara.
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Soprou o vento mais forte. (Pareceu-me sentir o aroma da tempestade). Afoito, tomou ele as rédeas. E o meu rumo, tal as minhas crenças, denegriu-se. Enevoou-se. Esfumou-se. Por onde anda ele agora?
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Hoje, talvez também amanhã e no dia seguinte, concedo a mim mesma o prazer mutilador de me entregar à melancolia.

04 outubro 2010

outono

Já chove. Já cheira a terra acabada de molhar. Já voam longe as andorinhas. Adormece cedo o Sol. E o céu, esse, ainda altivo, ditador e imponente, esconde-se, misterioso e imprevisível, na neblina. Espreita-me. Como eu a ele, interrogativa e inquiridora.
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Com a força da água escorre em mim a partida, inverosímil, de uns e a fixação, convicta, de outros. Eu estagno. Estanco-me. Conservo-me. Assisto impávida à sucessão dos dias, numa dinâmica exterior que me atinge e me trespassa sem criar cicatrizes ou deixar marcas.
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O campeonato muda e eu desço de divisão. Não integro a liga dos profissionais e descaio da dos amadores. Mantenho-me à margem.
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Guardo os sonhos em caixinhas e arrumo-os em prateleiras. Os que assumo separados dos que oculto. Os passíveis de concretização. E os outros. Todos os outros. Deixo-os repousar na Primavera porque o Outono se avizinha possante e os meus esforços andam débeis. É a menina novamente a puxar-me as saias e a reconfortar-se no isolamento. Caminha ainda comigo. Mas eu ando por aqui imóvel. Como poderia correr, estática, num outro sítio qualquer.
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Não sou já o que fui. Nem ainda o que quero ser. Agora que posso fazer tudo, o que quero eu fazer?

03 outubro 2010

ao serão

Acolhe-me nos braços. Asila-me o corpo molestado por um cansaço fictício. Por um ócio estagnante que desemboca depressivo em silêncio. Embala-me. Ouve quieto os lamentos que não murmuro. As cantigas de uma história que não pára de ruir. E madrugada dentro lá me afaga os ombros doridos, pesados de pensamentos e pesar.
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Entreguei-me. Sem modéstias. Acomodei-me. Fui-me acomodando à sua presença. Fui cedendo ao seu consolo. Como em tudo, sem impor limites ou tensões. Criei um laço agora difícil de quebrar. E uma dependência tão ambígua quanto reconfortante. É aqui o meu cemitério de angústias e anseios. O meu altar de seneridades e extravagâncias.
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No vazio de mim que me assombra a casa é ele aconchego e amparo. Nas noites que sentem, frias, a mudança das estações é ele agasalho e guarida. Abrigo e segurança. As ruas, irascíveis de inimizades, trazem-me ainda a memória de companhias de solidão.
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Vou abandonando os livros pelos cantos. Ridículo serem eles as minhas asas. Palavras que leio e jogo fora. Vergonhoso serem elas o meu alento. Refúgio à ausência de outros.
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É neste sofá, incómodo e desajustado, que me ultimo. Hoje. Como em tantos outros serões. E no ar, como por dentro, resta o sabor amargo de um café.