16 julho 2010

clandestino

Libertou-se a poeira e a fuligem. Talvez também as amarras e as mordaças. Na clandestinidade, exilados, espreitam agora os raios de sol pela penumbra dos corpos. Movem-se ainda as sombras, numa só, em passos de sedução e sensualidade. Em jogos de partilha e entrega. Em gestos de curiosidade e descoberta. Resistência e rendição ultimam-se na obscuridade. Balançam-se numa simbiose isenta de contestação.

Entre os muros que encerram estas horas, distantes da castração e do julgamento, corre mais vida que em todos os pedaços de terra que se ceifam lá fora. As fracções de existência adquirem outra dimensão. Não questionam. Não interrogam. Não impõem balizas. Aquietam-se os pudores. Despertam-se vicissitudes.

Não somos anjos ou demónios. Não somos escravos nem ditadores. Somos apenas dois. Perdidos numa noite só. Achados numa esfera de amores infames e desmedidos. Numa história ficcionada mas convicta de realidade. Termina a viagem. Chegamos, por fim, a casa.

12 julho 2010

inconstâncias

Inconstâncias. Incoerências. Inconformidades. Incongruências. Instabilidades. Ainda.

Sinto o corpo sequioso de aventura. A mente sedenta de descoberta. Os poros ardentes de mudança. A carne, os ossos, a pele e a alma. Todo um esqueleto imune à passividade. Inquieto. Indomável. Metamorfósico. Num duelo constante. Em fúria. Em busca. Incansável. Insaciável. Arrepiantemente incerto e volúvel. Leviano. Frívolo. Desconcertantemente ávido de independência. Imparável.

Algo me mostra que não é este, ainda, o limite. Que não é este, ainda, o rumo ou o caminho. Que não são estas as metas ou os propósitos.

Enquanto o cerco aperta, enquanto o cerco milimetricamente aperta, redescubro o desconforto e o inconformismo. É aí que percebo que não quero a linearidade. É aí que descubro que não quero ser fiel a nada mais do que a mim. E é aí que aceito a simbiose com o oblíquo, o fortuito, o ambíguo. Com o pecado e a promiscuidade. Com a liberdade.

07 julho 2010

76

Há uma escolha a cada passo. Há uma decisão tomada a cada segundo de cada minuto de cada dia. Há um rumo que se traça a cada instante, na efemeridade de um sopro ao ouvido ou na lenta melancolia do pesar e da ponderação. Cada uma dessas rotas manipula o plano que, frenética e incautamente, vou delineando.

Num instante, ímpar, único, singular, tudo muda. Livre arbítrio, descreveria Kant na sua metafísica dos costumes.

Se estou aqui – hoje, agora, neste momento que corre à medida que a caneta se arrasta pelo papel – é porque abandonei à mercê de si mesmas todas as outras possibilidades. Escolhi a despreocupação. E foi ela que hoje me proporcionou dois agradáveis dedos de conversa com uma desconhecida septuagenária.

Ao longo deste inusitado percurso tenho escutado frases estranhas, invulgares, incomuns. Algumas, de tão absurdas, ficam-me gravadas na memória. Como as cicatrizes da infância que, com os anos, transformaram os meus joelhos num manual de brincadeiras de rua.

Um dia, ainda nas horas de uma adolescência tão apaixonada como apaixonante, um professor de filosofia, rigoroso, firme, afincadamente católico, e de meia-idade, proferiu um conjunto de palavras que não voltei a esquecer. Metaforicamente apenas me confirmaram a sua loucura crónica.

“Lisa, a única razão pela qual permito que continues a apresentar-te nas aulas com o umbigo à mostra é porque o ventre é o símbolo da procriação e da prosperidade.”

Um bocadinho despropositado, não?

Num outro dia, não muito distante deste em que escrevo, o director da empresa na qual despendo muito mais que o horário laboral telefonou-me. O tom de voz era tão doce quanto o néctar produzido pelas abelhas. Já o conteúdo…

“Lisa, as mulheres querem-se meiguinhas. Meiguinhas. Ouviu?”

Um bocadinho descabido, não?

Pobre homem que luta pela sobrevivência num mundo que já não é o seu. Parece que a esperança é mesmo a última a morrer. Lamento.

E todo este discurso para chegar à desconhecida septuagenária que me cruzou o caminho. Quando passei por ela vinha a sorrir. Dada a felicidade livre de embaraços que emanava e o olhar preso ao meu, ainda aguardei por um “bom dia”. Mas o “bom dia” não chegou. Nem o “boa tarde”. Nem o “olá”. Nem o “passou bem”. Felizmente, a indiferença também não.

Os sons que se lhe soltaram da garganta foram, no entanto, muito mais surpreendentes. Podia esperá-los de um qualquer funcionário da construção civil. De um jovem mecânico. De um velho barbeiro, até. Mas nunca de uma senhora de ar sorridente e cara de avó.

“Elá, a menina é toda boa. Anda toda descapotável, né?!”

Desculpe?

“Só não percebo por que usa essas botas parecidas às dos bombeiros. Isso não lhe aquece os pés?”

E passados alguns minutos de fortuitas justificações lá virei costas. Desta vez, era eu que sorria.

06 julho 2010

margem

Podia dizer que é exigente. Que implica esforço. Persistência. Perseverança. Firmeza. Vontade. Que envolve um processo metódico. Construído de raiz. Engendrado meticulosamente. Aperfeiçoado com aprumo. E adaptado à rigidez inata da necessidade.

Podia dizer que fui magicando o meu. Criando pedaços de uma história, mutável e infinitamente inacabada. Fabricando um alter-ego. Construindo uma personagem. Mas não. Não me ocupou espaço. Não me esventrou tempo. Não lhe dediquei um esquisso sequer da minha atenção, sempre sequiosa de diversidade.

Foco e desfoco incansavelmente o espectro deste caminho. Fomento e abandono a expectativa. Procuro uma nova meta a cada instante. Um novo ponto de partida. Um novo desafio. Talvez tema enfrentar a estagnação que me cerca. Talvez tema ver parada a imagem que se propaga no espelho. Mas talvez ela já lá esteja há muito. Imóvel. Sem que eu consiga distinguir qual do reflexos é o verdadeiro.

Talvez me mantenha presa por vontade. A menina que fui ainda chama. Ainda grita. Ainda me quer. E é tão confortável deixá-la acompanhar-me.

Não levo nada demasiado a sério. Não levo a vida demasiado a sério. Não a carrego como um fardo. Não a prorrogo. Não a propago. Permito que corra a meu lado. Ao meu ritmo. Ao meu desejo. Por mim.

Com o tempo deixei de medir palavras. Deixei de mediar decisões. Não sei se por convicção ou por fraqueza. Se por determinação ou facilitismo. Estripei as barreiras do bom senso. Afrouxei limites. Desleixei-me. Na esfera esquartejada entre o certo e o errado.

Deixei de me arrepender. E persisti na repetição dos mesmos erros. Acabei por afrontar os lamentos. De que servem quando os actos são tão regulares como a certeza de um relógio voltar às zero horas um segundo após o último segundo do último minuto das vinte e três?

Ganhei. Como sempre. Como sempre ganho quando luto comigo. E perdi. Como sempre perco quando me gladio. Depende apenas do ângulo com que me vejo. Venço e sou derrotada em simultâneo. É uma única alma em guerra. Que faz isso de mim? Alguém que ama em excesso ou em escassez? Alguém que se maquilha ou que exibe a imperfeição do rosto?

Talvez um dia saiba.