25 março 2010

panorama

Durante anos sentiu-se naquelas terras a aridez da vontade divina, indiferente à indigência dos Homens. Durante anos entoaram-se cânticos e preces. Cortejos sairam à rua em noites secas e abafadas de Suão. Mulheres e crianças mendigaram aos céus o néctar que, abundante, mataria tanto a sede como a fome.
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Durante anos escasseou a água e o verde do chão. Minguaram os pastos, os frutos das árvores, os cereais dos solos. Acentuou-se a magreza dos bichos, alimento das gentes. Durante anos crescemos nós. Mais perto do Sol que do mar, que se assomava noutras paragens.
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Hoje vejo, noutros pisos, o regresso das noites de solidão vertical sob a lua. Respiro a frescura ausente de esterilidade. Hoje sinto distantes as idas à fonte em tardes de prosperidade. Tão distantes quanto a hora única diária em que se armazenava a água racionada nas torneiras. Hoje há fartura de recursos. Plenitude de conveniência. Abundância de comodidade. Vazia, no entanto. Fácil. Descomprometida. Falta devoção. Dedicação. Convicção. Ingenuidade. Amor.
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Faltam as camas compostas na tijoleira, sem outro aconchego que não os afectos, que refrescavam a morna sereridade dos corpos durante o calor do Verão. Faltam as mãos ásperas e gretadas da faina que ensinavam as nossas, delicadas e infantis, durante a apanha aventureira dos frutos da terra. Falta o companheirismo das brincadeiras tardias e inocentes de rua. Falta a partilha de casas e coisas. Porque lá, na vila que a reforma afastou do itinerário entre a capital e o turismo, todo o pouco era divisível. No fundo, apenas o egoísmo existia em insuficiência.

22 março 2010

primavera

Não sei se terá sido a mudança das estações. Não sei se terá sido a contínua rotação da Terra. Ou um novo alinhamento dos astros. Não sei se terá sido a rejuvenescedora chegada da Primavera. O odor a pólen ou o aroma a marezia. Não sei se terá sido a tarde ensolarada de domingo. Ou o calor ameno e reconfortante desta noite de silêncio e de luar.
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Sei que, mais uma vez, mudaram as marés. O vento parou de soprar. Fez as pazes com os aflitos. A chuva recolheu-se, exausta e melancólica. São ambos imprescindíveis. Mas hoje era essencial sentir que haviam mudado de rota. Que se haviam desinteressado destes ares e destas gentes. Hoje era essencial sentir que a turbulência que acarretam e que tanto me fascina havia, mesmo que momentaneamente, sido substituída. É saudável sentir longe os abismos e as tempestades, consciente da sua teimosa atracção.
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Os dias podem, afinal, ser descomplicados. Descomplexados. Tão simples quanto a entrega ao ócio e aos prazeres do vagaroso correr das horas. Tão plenos quanto o caminhar, despreocupada, entre os outros, sabendo que à minha margem caminha alguém tão descontraído quanto eu.

18 março 2010

infância

Era um miúdo irrequieto, travesso, avassalador de energia, humor e rebeldia. Perdi-lhe o rasto há quase uma década, depois de anos de uma vivência de partilha intimista de crescimento e descoberta. Seguimos caminhos opostos. Livre arbítrio, ávido de liberdade.

Reencontrei-o agora. O menino cresceu. Ganhou corpo. Maturidade. Objectivos. O menino cresceu. Fez-se à vida. Ao mundo. Optou. Fez-se homem. Mais do que algum dia eu serei mulher. Mas nos seus olhos amendoados de criança vive ainda um rapaz endiabrado, mascavado de sonhos por realizar.

Sei que olha, frenético, sobre os ombros. Inquieto, numa busca sequiosa mas consciente sobre o mundo que o acompanhou, à margem, sem que o tivesse cruzado. Sei que tem medo de duvidar do caminho que escolheu. De o pôr em causa. De hesitar. Mas sei também que o levará até ao fim, orgulhoso. Que percorrerá todos os trilhos que, um dia, achou serem os correctos. Sei que há uma nova pele a cobrir-lhe mais a alma que o corpo. Mas ele vive ainda lá por baixo, resguardado na bravura das missões.

Sei que voa alto todos os dias. Só não sei se o faz livre e feliz. Vezes houve em que quis voar como ele. No fundo, hoje queria apenas que ele – menino-homem - tivesse tido a oportunidade de voar na terra como eu, indiferente a valores de guerra e sobrevivência.

13 março 2010

fio

Não tenho um plano meticulosamente traçado. Não tenho um destino. Não tenho passos pensados e medidos que me levem a alcançá-lo. Não pondero os caminhos que cruzo. Não tenho metas à minha espera. Não procuro incessantemente a ponta do arco-íris onde se esconde a realização e a, talvez consequente, felicidade.
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Vagueio, anárquica, pelos dias. Ultrapasso-os sem dor e sem esforço. Sem pensar que estou mais próxima do final ou mais distante do arranque. Estou aqui. Hoje é aqui que estou.
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Não tenho um itinerário ou uma cruzada. Tenho uma paisagem que muda de cor e de forma a cada instante. E usufruo dela, sem me deter, consciente da sua mutabilidade. Será vago ou convincente?
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Iço-me à austeridade dos cumes na mesma leveza com que me atiro ao mistério dos abismos. Muda tudo tão depressa nesta sucessão de socalcos!
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Absorvo a euforia das serras e a degradação dos vales. Não quero permanecer em nenhum dos dois. Não sei permanecer em nenhum dos dois. Atravesso-os em padrões esporádicos de tempo. Sem fomentar raízes. Sem deixar marcas. Sem mudar a lógica, pouco imprevisível, do vaivém.
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Nesta ausência fortuita de objectivos, apregoo o intuito de ser este o meu propósito. Viver constrariando as regras que ensinam a fazê-lo.

11 março 2010

O Canário

Chama-se O Canário e não foge à arquitectura medíocre, enfadonha e massificada de todas as ruas daquela zona da cidade. É a eterna diferença entre o velho e o antigo, o feio e o degradado. O Canário não é um café ou um snack-bar. Está tão longe de uma pastelaria como de uma tasca. O Canário é um antro imundo, resultado de uma sucessão de conjugações de mau gosto.

O Canário não é o meu espaço. Nada tem de meu. Não temos qualquer afinidade. À excepção desta indiferente e repugnante, mas cooperativa, coabitação. Ultimamente passo n’O Canário com alguma frequência. É um refúgio para os minutos em que me alheio dos olhares que já conheço.

N’O Canário não encontro o patrão. Aquilo tem mau aspecto e o senhor tem um estatuto a manter - aquele que conquistou tanto com o labor como com o fato e a gravata. N’O Canário não encontro as meninas bonitas e encantadoras do trabalho. Ali não abona requinte e elas não querem reconhecer que são devoradas com olhos de lince esfomeado. Não as censuro. N’O Canário não encontro amigos ou conhecidos. E é isso que me faz gostar de lá passar.

O Canário é uma espécie de taberna, onde não perdura nem a limpeza nem as gentes de bem. N’O Canário não há vinhos do Alentejo ou do Douro. Se antes era coisa de tasca, hoje é de clube. N’O Canário não há flutes de champanhe ou copos de uísque old fashion. N’O Canário não há pastelaria fina ou bolos à fatia. Não há quiches, tartines ou outras iguarias importadas. Não há o Público ou o DN. Não se fala do Programa de Estabilidade e Crescimento, TGV’s, Faces Ocultas ou outsorcing.

N’O Canário há homens a beber cerveja ao balcão. As mulheres escasseiam por aqueles lados para fazer brilhar a empregada tão sebenta quanto a tábua dos enchidos. Há velhos e novos a sorver os últimos tragos de Sagres directamente da garrafa. Há amendoins servidos de um saco industrial num pires que é usado e reusado sem artefactos ou ilusões de higiene. É assim porque sempre foi assim.

N’O Canário há apenas um casal que ali se senta diariamente à mesma hora. São moradores do bairro. Só podem ser. Vão a’O Canário por não terem ousadia para experimentar algo que não seja familiar. Ele lê o Record. Ela olha-o silenciosa. Olha-me a mim também, sempre que entro e que saio. Ela e os que bebem cerveja. Não que eu seja bonita ou atraente. Apenas porque não é comum entrarem forasteiros n’O Canário. Tratamo-nos com uma indiferença mútua, sem confrontos ou cordialidades. Daí mantermos esta relação saudável.

Já disse que a’O Canário não vai o patrão, as colegas bonitas e os colegas comuns, as pessoas de bem, os amigos ou conhecidos? N’O Canário não há o rapaz humilde e trabalhador do café da outra esquina, a dizer-me que todos os dias estou mais bonita. Ao menos, n’O Canário não tenho de repetir o pedido várias vezes por me virarem as costas enquanto falo. N’O Canário tudo é demasiado simples e é por isso que lá vou.

08 março 2010

bichos

Verguei-me. Andava aos solavancos dentro de mim, numa batalha em que duas almas se gladiavam sem cessar. Das certezas subsistia a consciência de nenhuma delas atingir algum dia um palanque cimeiro. Então verguei-me, tão racional quanto uma avestruz. Assumi a desonra de peito erguido. E escolhi baixar os olhos ao horizonte, indigna de integridade.
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Por momentos, julguei que me encolhera numa cobardia tão difícil de aceitar quanto de digerir. Admiti ter-me despojado da luxuosa verticalidade e desamparado a, outrora imune, rectidão. Fui infiel, confesso. Traí-me.
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Achei que repudiara todas as convicções - aquelas que havia árdua mas majestosamente construído por entre as colinas de uma vida inteira. Supus que se tinham desmoronado todos os eixos do meu orgulho, todos os alicerces da minha auto-estima. E dei-me por derrotada. Verguei-me.
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Depois vim a descobrir que tudo é passível de ser relativizado. No fundo, há uma diferença colossal entre a avestruz que fecha os olhos ao enterrá-los e a que os mantém abertos. Eu optei. Preferi curvar-me a manter-me erguida sem firmeza ou veracidade.

03 março 2010

Pele

Vejo-a excomungar a pele. Arrancar partículas de ser. Esmagar entre os dedos a flacidez da carne. Vejo-a contorcer o corpo como se dele se pudessem esvair as tormentas que se açoitam lá dentro, angustiadas.
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Vejo-a lançar as unhas ao rosto, em gestos de ressaca esquizofrénica. Vejo-a sová-lo. Coagi-lo. Obrigá-lo a recuperar a coragem arrasada. Impor-lhe objectividade. Vejo-a tentar repor o orgulho, outrora içado aos céus com a leviandade dos pés agora perdidos.
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Vejo-a largar-se abandonada. Olhos húmidos, revoltos, agonizantes, moribundos. Degolados num sal adocicado sem torneira de segurança. Vejo-lhe a raiva e a repulsa, intermitentes com o desamparo e a miséria.
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Aconchego-a nuns braços feios, frágeis e imundos, sabendo que hoje são eles o seu único colo.

tempo

Há na cozinha da minha casa um relógio de parede. Redondo. Antigo. Sem qualquer beleza ou requinte. Não sei quando ocupou aquele lugar. Não sei sequer a hora exacta em que deixou de contar o tempo. Sempre o conheci assim. Parado. Imobilizado. Imóvel. Sem o tic tac da vida. Sem a rotina melancólica de todos os contadores de fracções de existência.
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Dou comigo a observá-lo vezes sem conta. Agrada-me saber que não mudará de postura sem a minha intervenção. Agrada-me constatar que, ao contrário do mundo e dos outros, ele continuará ali, inflexível à mudança.
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Nunca me atrevi a tocar-lhe. Parece tão majestoso! Mas não. É apenas um relógio de cozinha, idêntico a tantos, que um dia se cansou do ofício de lembrar às pessoas que nada acompanha a intemporalidade do sempre.
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Não penso aniquilar-lhe o ócio ou despromovê-lo. Não penso substituí-lo. Porque, no fundo, sei que é ele que, letárgico, me recorda que é este o meu abrigo - o recanto onde posso permanecer desvirtuada da influência das horas e dos seres.

mentiras

Andaram para aí a dizer que chovia. Que o céu se iria abater sobre os incautos. Que o negro opressivo das nuvens cobriria o aconchego do Sol. E que os deuses se vingavam agora da descrença dos homens.
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Andaram para aí a dizer que viriam tempestades. Ventos rudes. Ondulação emotiva. E frios lacerantes. Juntos desabariam sobre o mundo que conhecemos, fustigando as almas algemadas e aprisionadas.
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Mas hoje o azul que limita estas terras transbordou do mar e arrastou-se aos limites da visão. Criou uma pintura de tonalidades múltiplas, expandida a todas as direcções do olhar.
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Hoje o dia apoderou-se do recanto da noite e venceu esta batalha de lugares-comuns. Hoje, enquanto escrevo estas linhas, há ainda a maior das estrelas a brindar-me o tempo e a acompanhar-me as horas.
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Porque a chuva, o vento, o frio e as tempestades apenas existem para além destes ossos. E só com permissão transgridem essa barreira.